quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Biografia




Pedido dele: "Não me pergunte quem sou, e não me diga para permanecer o mesmo"



O filósofo que se atreveu a tudo
Daniel Molina



El filósofo que se atrevió a todo. Publicado en Buenos Aires: Clarín, Sección “Cultura Y Nacion” en 25 de abril de 1999. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento.



Quando morreu, em 25 de junho de 1984, Michel Foucault era o pensador mais famoso do mundo. Ainda que fosse algo menos popular do que havia conseguido ser Jean-Paul Sartre depois da Segunda Guerra Mundial, desde os fins dos anos 60 sua obra ocupou o lugar central. Michel Foucault morreu aos 57 anos: tinha aids em uma época em que a doença era rapidamente mortal. O vírus havia sido descoberto, apenas dois anos antes que o filósofo morresse, por Luc Montagnier, um pesquisador que foi discípulo do Dr. Paul Foucault, pai de Michel.

Filho, neto e bisneto de médicos, não foi fácil para Michel dizer a seu pai que não iria continuar a tradição familiar. Aos onze anos surpreendeu os mais velhos – que davam por certo que ele seria cirurgião ­– quando anunciou que queria ser professor de história. Apesar de tal atrevimento infantil, Foucault manteve durante toda a sua vida uma relação privilegiada com a medicina, ainda que fosse uma relação marcada por uma desconfiança essencial.

Desde muito pequeno, o filósofo conheceu o sofrimento. Sabia-se diferente e seu entorno lhe demonstrava de mil maneiras que isso não estava bem. Criado em um lar onde a forte tradição católica de linhagem paterna regia até os mínimos detalhes da vida cotidiana, membro da puritana classe média provincial das décadas de 30 e de 40, o rapazinho havia descoberto que – diferentemente do que dizia a maioria de seus companheiros – ele se sentia atraído por homens. A descoberta tornou-se uma tortura: não sabia o que fazer, a quem recorrer, como viver. Em sua casa, as pressões para que o menino se “endireitasse” deviam ser intoleráveis. O filósofo contou, pouco antes de morrer, que quando pequeno, seu pai o levou a uma das salas de cirurgia a fim de que o pequeno “se fizesse homem”. A vida para ele se tornou uma tortura: até meados de seus vinte anos, Foucault tentou várias vezes o suicídio e sua afeição pelo álcool nasceu nesta época. Contudo, ter sobrevivido ao escândalo de ser um adolescente homossexual em um mundo que considerava que esta orientação sexual era uma doença ou uma forma de degeneração moral, ter sido capaz de superar semelhante censura, o acostumou ao risco, o fortaleceu e o capacitou para intervir nos combates intelectuais que o esperavam, não menos ferozes que as cruéis brincadeiras e os brutais sarcasmos que teve de enfrentar em seus anos de estudante.

Foucault aprendeu desde muito cedo a enfrentar as questões desde um lugar absolutamente original. Nas disputas que a esquerda e a direita mantinham durante os quentes anos da Guerra Fria, mesmo que alinhado com a esquerda (inclusive, ingressou no Partido Comunista, seguindo seu amigo Louis Althusser), sua posição estava tão longe de ser ortodoxa que não foi estranho a ninguém que ele deixasse o comunismo tão rapidamente como havia ingressado. Nunca foi um esquerdista típico; suas posições políticas escandalizaram tanto aos conservadores quanto aos progressistas. Brilhante em uma geração de homens brilhantes (entre muitos companheiros de estudos destacavam-se Pierre Bourdieu e Paul Vayne, entre seus amigos figuram Pierre Boulez, Roland Barthes e Gilles Deleuze), Foucault sobressaiu-se desde o começo de sua carreira universitária. Seus professores (Maurice Merleau-Ponty, Georges Dumézil, Louis Althusser, Jean Hyppolite, Georges Canguilhem) acreditavam, desde que o conheceram, que ele era “a promessa de sua geração”.

Ainda menino, estava obcecado por ocupar os primeiros lugares no estudo. Em Poitiers, somente era superado por um colega cujo nome parece uma brincadeira do destino: Pierre Rivière (mesmo nome do assassino que escreveu as famosas memórias que Foucault analisou em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão). Uma das recordações mais amargas de sua adolescência está relacionada com a luta pela primazia na escola. O jovenzinho Michel viu chegar, de golpe - em plena invasão alemã – rapazes judeus que escapavam de Paris, então ocupada pelos nazistas. Os jovens parisienses tinham, obviamente, uma melhor formação do que os jovens de Poitiers, e por conseguinte, superaram a Michel. Ele detestou tanto esta situação que se fechou em uma fantasia que não o abandonou: nela, os parisienses “desapareciam”, eram seqüestrados e deportados de Poitiers. Esta fantasia se fez realidade rapidamente: os jovens judeus forram enviados aos campos de concentração. O adulto e iconoclasta Michel Foucault ainda sentia que tinha alguma culpa pela forma com a qual a história realizou o seu desejo.

A beatriz de Foucault foi Nietzsche. Como Beatriz guia Dante na Divina Comédia, a obra de Friedrich Nietzsche (especialmente os textos que ele escreveu quase à beira da loucura) foi para Foucault uma iluminação. Quase como nenhum dos especialistas em Nietzsche (nem mesmo pensadores tão sutis como Giorgio Colli) Foucault soube ver no autor do Nascimento da Tragédia tanto o poeta quanto o filósofo, o artista quanto o pensador. Para Foucault (como para Nietzsche) a forma, o tom poético que percorre sua escritura e o apelo ao aforismo nunca foram questões secundárias. Nietzsche também lhe permitiu sentir-se mais seguro para elaborar seu ponto de vista singular.

Como costuma acontecer com muitos jovens que se sentem incômodos em função de sua posição de estranho às normas e aos estilos que definem ao grupo que “pertence”, também para Foucault a obra de Nietzsche revelou o poder e o gozo de ser diferente. Esta obra foi o seu guia e sua sustentação; ajudou-o a compreender que ter um ponto de vista original não era um pecado pelo qual se devesse pagar caro. Há um par de aforismos nietzscheanos que o acompanharam por toda a vida quase como mantras para uma meditação pessoal. Um desses aforismos (o que, segundo o filósofo francês, marcou cada momento de sua vida) ele o parafraseava assim: “Trata-se de chegar a ser o que se verdadeiramente é”. O outro diz o seguinte: “O amor à verdade é terrível e poderoso”.

Entre as influências que o próprio Foucault considerou essenciais para sua formação se destacam Martin Heidegger e Jean-Paul Sartre (com quem se enfrentou mais de uma vez e de uma maneira tão dura, que levou muito tempo para reconhecer a dívida que tinha com sua obra). Não é casual que Sartre seja dramaturgo e novelista, além de filósofo. Como Roland Barthes, Foucault apreciava sem discussão a obra literária de Sartre. Tampouco é casual que Heidegger seja um dos poucos filósofos que fundou grande parte de sua reflexão sobre a poesia, à qual considerava uma potência reveladora.

O ponto de vista original que caracteriza a indagação foucaultiana, seu olhar pouco habitual no mundo do pensamento é, contudo, freqüente no universo da literatura. Se poderia dizer que Foucault é o mais literário dos filósofos e o mais filosófico dos escritores. Muitas de suas referências “teóricas” são literárias. Não é acidental, por exemplo, que no começo de As palavras e as coisas, diga que a pesquisa deste livro que o impulsionou à fama (inclusive à popularidade) nasceu de um fragmento de um dos ensaios de Jorge Luis Borges que se encontra em Outras inquisições: “O idioma analítico de John Wilkins”. Borges (da mesma forma que seu admirado Oscar Wilde) era um mestre na difícil arte de expressar idéias extremamente complexas e perigosas mediante paradoxos brilhantes e sutilezas estilísticas.

O estilo de Foucault (mas o estilo não é secundário, “o estilo é o homem”) é literário: desde a inclusão de multinarrações que são essenciais para o desenvolvimento do argumento até o trabalho com a escritura (uma escritura que abunda em metáforas, uma escritura que apela a transformar muitas de suas frases em epigramas, quase em versos e seus parágrafos em aforismos) fazem de Foucault um escritor, antes de um pensador.

O menino que decidiu ser professor de história se transformou em um dos escritores que mais profundamente refletiram sobre a história, um poeta do pensamento e um narrador teórico. Sua tese de titulação principal (apresentou duas; a segunda intitulada L'Anthropologie de Kant – Introdução, tradução e notas – não editada) foi apresentada em 1961, por Georges Canguilhem e D. Lagache: era a História da Loucura. Apenas lançado, o livro foi saudado como uma contribuição essencial para a história das mentalidades por historiadores da estatura de Fernand Braudel. A raiz deste texto começa uma série de programas de rádio dedicados a “história da loucura e literatura” que se mantêm no ar quase um ano.

A História da Loucura o transforma em um pensador de moda no meio intelectual francês. O jornal Le monde o qualifica como um “intelectual absoluto, fora do tempo”. Neste livro fundacional, Foucault insiste em pensar a loucura em sua especificidade, não como uma essência imutável que se manteria através do tempo e as culturas (só mudariam as formas de designá-la), mas que é própria de cada momento histórico, de cada contexto cultural, social e econômico. Enquanto, mais precisamente, é definida desde o ponto de vista da ciência, a loucura se torna cada vez mais inapreensível. Contudo, seu flanco politicamente explosivo logo se porá em manifesto por meio do Maio[1] Francês, quando Foucault se relaciona com os antipsiquiatras, Ronald Laing e David Cooper e com os que criticam a reclusão em manicômio, como Basaglia. Nos fins deste ano, Foucault termina de escrever O nascimento da clínica (livro que ele apresenta como “as sobras da História da Loucura”), que aparecerá dois anos mais tarde. A medicina – vista a partir da crítica mais virulenta contra o saber médico – segue ocupando um lugar central em seu pensamento. Diferentemente dos que criticam a medicina moderna por seus erros (pelos efeitos colaterais que têm os medicamentos ou pelos diagnósticos errados), Foucault critica a medicina em sua “essência”: o saber médico é negativo por si mesmo, sobretudo quando acerta, porque sua mecânica destrutiva – ver a doença como algo a combater – cria as condições de novas enfermidades, que serão mais difíceis de controlar.

Em 1966 aparece seu livro mais difundido, As palavras e as coisas. A conclusão do ensaio contribuiu para que a imprensa lançasse uma polêmica (que para Foucault – como para muitos outros intelectuais – é uma discussão fundamentalmente “midiática”) que ocupou durante meses as páginas dos principais jornais franceses: a muito mal entendida questão do que se chamou “a morte do homem”. Foucault, que estava interessando em desmontar o mecanismo de naturalização do pensamento (um mecanismo que faz com que se acredite que os conceitos, assim como também os problemas e as soluções científicas, são eternos – ou quase – porque o pensamento é visto como se estivesse fora da história), escreveu, como conclusão de sua investigação: “Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho e nem o mais constante problema que se tenha colocado ao saber humano (...) O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que nosso momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do séc. XVIII, como solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria, como, na orla do mar, um rosto de areia”.

Nos apaixonados dias do Maio francês, o pensador se encontrava entre dois continentes (Europa e África) e, alem disso, nadando entre duas águas: poucas horas antes da sublevação estudantil Foucault é um acadêmico de prestígio, um professor querido, mas “elitista”, um homem que está discutindo com o governo o futuro da educação secundária e universitária da França. É um homem que “renegou” Marx. A maioria da esquerda o qualifica de “violentamente anticomunista”. Realiza cursos na Tunísia ao mesmo tempo em que é nomeado professor da universidade de Nanterre, que será uma das trincheiras mais ardentes durante a revolta estudantil. Durante quase todo Maio, Foucault permanece bloqueado em Tunísia; logo pode tomar um vôo a Paris no dia 27. Chega justo para somar-se ao motim dos líderes da esquerda que se realizou no estádio Charléty. Com idas e voltas a Tunísia, Foucault participa das últimas manifestações francesas, antes que o partido de De Gaulle ganhe amplamente as eleições convocadas por Pompidou. Foucault declara que as revoltas hiperideologizadas dos estudantes franceses não lhe interessam tanto. Acrescenta que, pelo contrário, “a militância violenta, corporal e necessária” dos tunisienses o fez redescobrir a amor à militância.

Poucos dias depois de acabada a revolta, Hélène Cixous o convida para participar da criação da universidade de Vincennes. Mesmo que o tenha convocado para dirigir o projeto, Foucault só aceita ajudar a estruturar os departamentos de psicanálise (em conjunto com o lacaniano Serge Leclaire) e de filosofia (junto com Alan Badiou). Enquanto os intelectuais soviéticos - Na revista Literatounæ Gazeta – atacam duramente o “antimarxismo e anti-humanismo” de Foucault, o novo ministro da educação da França, Olivier Guichard, não o concedeu validade nacional à licenciatura outorgada por Vincennes (onde o pensador ensinava) porque “têm muitos cursos dedicados à política e ao marxismo”.

Nos começos de 1970 Foucault realizava a sua primeira viagem aos Estados Unidos. A partir dali, conquistará o mundo intelectual. Ao mesmo tempo em que chega a Berkeley, às experiências com as drogas – de maneira muito tímida – e às práticas sexuais sado-masoquistas – não tão timidamente – Foucault começa a enfocar seu trabalho sobre o problema do poder e da relação entre o saber e poder. Em resposta a um longo artigo que Althusser publicou em La Pensée, no qual os aparelhos de estado se diferencia segundo funcionem pela violência ou pela ideologia, Foucault escreve um artigo que critica esta distinção. É a origem de outro de seus livros mais difundidos: Vigiar e punir, que verá a luz cinco anos depois. Ao mesmo tempo, funda o Grupo de Informação sobre as Prisões (GIP), como forma de intervenção específica sobre a realidade. É nesta época que Foucault escreve sobre as prisões. Pergunta-se por que as prisões, apesar de conter uma população minoritária, exercem tal fascinação social. Ele crê que as prisões fascinam porque permitem aos “bons, aos cidadãos irrepreensíveis”, aos que se consideram socialmente “inocentes” exercer o mal sem limites: “Todas as violências e arbitrariedades são possíveis na prisão, mesmo que a lei diga o contrário, porque a sociedade não só tolera, mas exige que o delinqüente sofra”.

Em sua aula inaugural do Collège de France, em 02 de dezembro de 1970, Foucault expõe sobre a questão do poder. Durante 13 anos, cada quarta feira, às 17:45h exporá suas pesquisas. O tema do primeiro curso, intitulado “A vontade de saber”, é a contraposição dos modelos teóricos de Aristóteles e Nietzsche. A concorrência foi tão massiva que não sabiam onde colocar tanta gente. Foucault começa um período de abertura a todos os temas, a todas as formas de abordagem: os anos de 1970 serão de intensa aprendizagem e de elaboração apaixonada. Ao regressar de sua viagem ao Irã (ainda governado pelo sha) em 1977, dirá uma de suas frases mais difundidas e, quem sabe, menos entendidas: “Há mais idéias no mundo que as que imaginam os intelectuais”. A experiência californiana que viveu durante seus últimos dez anos de vida foi essencial. Em Berkeley ensinou (e pesquisou). Nas saunas gays de Los Angeles acedeu a práticas sado-masoquistas que, mais que subjugá-lo, o permitiram desenvolver uma reflexão original sobre o gozo por meio da dor (é o Foucault mais intenso e menos difundido nas universidades). Apesar de que seu interesse pela sexualidade possa parecer óbvio (interesse refletido em sua última obra, os três tomos da História da sexualidade), o enfoque que Foucault dá a questão, não o é. Para o próprio filósofo, foi um problema chegar a pensar o sexual. Quando em seus anos universitários o deram como tema de investigação filosófica “a sexualidade”, Foucault se aborreceu com Canguilhem por propor “algo assim como objeto da filosofia”. Pelo contrário, depois de percorrer um longo caminho, em suas investigações dos anos 1970, ele pergunta, em primeiro lugar, por que a sexualidade é objeto de uma preocupação moral (e já a pergunta desarma a “naturalidade” da questão, já deixa de ser óbvio que o sexo é um problema moral: está claro que alguém, alguma instituição, um poder necessita que o sexo seja supervisionado pela moral).

Sua obra foi se aproximando a seu ideal de vida: chegar a ser o que verdadeiramente se é. Ao mesmo tempo em que o sério Foucault – o que havia negado a importância da vida para a obra – foi capaz de ir deixando de lado seus próprios temores e se atreveu a manifestar-se, começou a importar-lhe não só para quem fala, mas como se vive uma experiência. Isto iluminou sua obra. Sua filosofia transformou-se naquilo que Sartre desejou produzir mas não chegou a articular: uma ética. A ética de Foucault nasceu quando, em sua reflexão, encontrou-se com seus mestres: os antigos gregos. Esta intensidade final, nascida do risco, outorga a sua obra uma consistência clássica. Talvez por isso suas idéias não pareceram correr o risco de desvanecer-se como um rosto de areia na beira do mar.
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[1] Referência à revolta estudantil ocorrida em Paris em maio de 1968 (N. do T.)






Veja mais sobre Foucault em As Histórias de Michel de Foucault, disponível em http://www.klepsidra.net/klepsidra12/foucault.html







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